7.11.14

Estabilidade

Hoje é meu último dia de Tribunal. O fim de um ciclo que começou lá no infinitamente distante ano de 2003, meio de surpresa, no embalo de uma grande virada na minha vida que foi o diagnóstico e subsequente tratamento do meu TDAH. Aconteceu tudo meio de surpresa, de improviso. No último dia de inscrições, uma amiga me perguntou se eu iria prestar, porque era para a área de informática e a inscrição estava baratinha. Naquela época, no início da minha Fase Ritalina, eu estava fascinado com minha própria capacidade de me focar em coisas que antes eram praticamente impenetráveis para mim de tão maçantes, então em um mês entre a inscrição e a prova eu li duas apostilas dessas de banca e, para minha surpresa (e para agravar minha sensação de que eu tinha despertado um tipo de superpoder que me permitia fazer qualquer coisa) passei em primeiro lugar, e fiquei com a única vaga que estava em disputa. Mesmo não tendo nunca sido minha ambição, ou mesmo pretensão, terminei aquele ano - que havia começado no fundo do poço, abandonando a UFRJ e entregue à certeza de que eu era um vagabundo sem rumo incorrigível - como funcionário público do judiciário federal.

Anteontem, dei a canetada no formulário de pedido de exoneração. Não foi uma atitude de impulso, mas também não foi resultado de um cuidadoso planejamento ao longo dos anos para migrar do serviço público para algo mais ambicioso fora dele (coisa que eu tinha em mente nos primeiros anos, mas que foi sendo postergado até ser, finalmente, esquecido). Foi apenas como as coisas aconteceram. Diversos acontecimentos ao longo do último ano foram alterando cada vez mais as minhas perspectivas de futuro até que, no início do segundo semestre, a permanência no Rio de Janeiro ficou insustentável financeiramente, e tomamos a decisão de irmos para São Paulo, aonde as condições são suficientemente melhores para que a nossa subsistência seja garantida. Eu tive a chance de fazer uma permuta com um funcionário do TRT de São Paulo, mas apareceu uma proposta mais interessante, tanto financeira quanto profissionalmente, na iniciativa privada. Então eu fiz a opção, e foi uma opção bastante natural para mim.

O que eu não esperava, no entanto, era a reação das pessoas. Não houve um único parente, amigo ou colega que não tenha arregalado os olhos ao descobrir que eu estava me exonerando daqui. Eu já contava a novidade esperando os olhos dos interlocutores se esbugalharem, e eventualmente a boca entreabrir incredulamente. Muitos me parabenizaram pela "coragem," alguns me perguntavam um "mas por QUÊ" em tom confuso, e houve mesmo quem tenha tentado me dissuadir da idéia - em especial meu chefe, o que é até compreensível, mas nem de longe ele foi o único. Alguns me suplicaram para repensar, para tentar uma licença sem vencimentos - o que acabei fazendo, a contragosto, mas a probabilidade dela ser dada em tempo hábil era zero, então não insisti. E, afinal, não era o que eu queria. Eu queria sair, e foi o que eu fiz. E por um momento, quando assinava a papelada, me senti cometendo um crime, ou desrespeitando as crenças e os valores alheios, tamanha a resistência que a idéia teve entre todos os que me cercavam. Isso me deixou, de certa forma, triste. Mas foi só quando um colega daqui, com quem eu troco uma ou outra palavra, aproveitou que estávamos descendo juntos no elevador para - gaguejando, acreditem - me parabenizar pela coragem de ser "um dos raríssimos casos na história do Tribunal a pedir exoneração voluntariamente," que eu percebi que eu não tenho por que me sentir mal. Não estou sendo corajoso, irresponsável nem temerário. Os outros é que não entendem nada da vida.

Não quero que pensem que eu não entendo o que significa ter um emprego estável, ou que não dou valor aos benefícios que minha carreira oferece. Eu sei muito bem o que significa estar aqui, e o que significa estar trabalhando pela CLT para a iniciativa privada. Sei de muita gente próxima - bem próxima, inclusive - que vive perrengues terríveis no mercado de trabalho atualmente e que daria tudo para ter a estabilidade que eu estou, no conceito leigo de alguns, jogando fora. Mas a verdade é que, em 11 anos de Tribunal, eu não senti essa tão romantizada estabilidade que todo mundo associa ao funcionário público. Claro, eu tinha garantias que a maioria não tem - a de que eu não seria um belo dia chamado na sala do chefe para ouvir que a barca do downsizing estava passando e me levando, por exemplo. Mas no quadro geral - na vida, nas finanças, na saúde - não tive nenhuma estabilidade não. E nem poderia ter, porque estabilidade é uma utopia, um construto, um pote de ouro ao fim do hipotético arco-íris da vida diária. É uma mentira colorida feita para trazer perspectiva de conforto, muito como a fé em alguma religião da vida.

Aos 33 anos, eu hoje tenho o pleno conceito da diferença entre conhecimento e sabedoria. É fácil adquirir conhecimento, mas a sabedoria depende diretamente da experiência de vida. Quando aquele colega falou comigo que "mas de repente você também terá uma estabilidade lá na empresa, por causa das circunstâncias, né?" eu me senti conversando com uma das personagens do Mito da Caverna, de Platão, que tentava compreender o que eu iria fazer do lado de fora onde não haviam sombras perfeitamente definidas. E ele deve ser uns 20 anos mais velho do que eu, mas naquele momento, toda a falta de sabedoria dele transbordou aos olhos. E eu me senti aliviado, porque até o momento, toda a incredulidade e toda a negatividade dos outros em relação a minha decisão - mesmo dos amigos que me apoiaram, mas nunca sem deixar escapar um "tem certeza?" que demonstrasse que eles, também, não concordavam comigo em algum nível - tinha me deixado numa situação que só poderia ser explicada de duas formas: ou eu estava completamente maluco, ou todo mundo ao meu redor estava completamente desinformado. Naquele momento, tive certeza que era a segunda opção.

E não culpo ninguém por isso, realmente. Como eu disse, conhecimento é uma coisa, sabedoria é outra. Uma pessoa pode aprender muito cedo na vida que a natureza é uma coisa dinâmica, mas enquanto houver qualquer ilusão de segurança à qual ela possa se apegar, mesmo que subconscientemente, essa informação será apenas conhecimento. É só após muitos anos vivenciando as inconstâncias da vida, só depois que o tempo demole um a um todos os supostos portos seguros de uma pessoa, que o conhecimento é absorvido pela alma e vira sabedoria. Por isso idosos são tão sábios, mesmo quando não tiveram muito acesso a informação e conhecimento na vida. Porque eles detém essa vivência, que nem o mais estudioso dos jovens pode ter.

Eu tenho uma vantagem nesse aspecto. A minha vida é mais inconstante do que a média. A instabilidade não está só nos movimentos sociais, econômicos e geopolíticos ao meu redor, está dentro da minha cabeça. A vida de um TDAH é uma eterna instabilidade. É uma torrente constante de frustrações, pancadas, pequenas derrotas. Então, de certa forma, não estou abandonando estabilidade nenhuma. Pelo contrário, esse último ano foi um dos mais instáveis e malucos de minha curta-mas-não-tanto vida, e eu tive que lidar com mais momentos de chão sumindo de baixo dos pés em 11 meses do que muita gente lida a vida inteira. Estar ou não no serviço público não vai me trazer esse falso conforto de uma suposta estabilidade, porque aqui a guerra é 24/7.

Por outro lado, talvez isso seja bom. Talvez a instabilidade, a incerteza, me faça bem. Minha produtividade aqui no TRT, que era tão elogiada nos primeiros anos que passei aqui, caiu a quase zero nos últimos. Em parte porque eu me desmotivei com a falta de desafios e o ambiente tedioso, e em parte porque outras partes da minha vida solicitaram minha atenção. Antes de ser diagnosticado com TDAH, eu não era um vegetal. Eu tive um bom aproveitamento no primeiro e segundo graus escolares, eu cheguei a cursar Piano na EMVL, eu tinha minhas conquistas aqui e ali... mas eu não tinha controle sobre elas. Eu me dedicava àquilo que ativava meu foco, e um dos principais ativadores era a pressão externa. Enquanto eu morava com meus pais, a dinâmica entre eu e eles gerava essa pressão, essa cobrança, que era suficiente para me levar. Foi quando saí de casa para morar sozinho que a coisa degringolou. Estar numa situação confortável, sem cobranças imediatas, acabou com minha produtividade. Quando comecei o tratamento com a Ritalina, o remédio substituiu essa pressão e eu pude enfim direcionar meu potencial para onde eu bem entendia.

Mas eu não contava com o outro lado da moeda: depois da chegada dos filhos, a dinâmica de pressão voltou a estar presente dentro da minha casa, e sequestrou toda minha energia. Eu não precisava mais de estimulantes, eu precisava de um DESestimulante, algo que conseguisse quebrar essa atração gravitacional irresistível que a pressão dos imprevistos domésticos diários exercia na minha atenção. E por anos eu tentei de tudo, troquei inúmeras vezes de remédios tarja preta, cheguei a estar tomando 10 comprimidos por dia antes dos 30 anos, mas sem sucesso. As áreas da minha vida que não me exerciam pressão (meu emprego estável, minha faculdade quase-terminada que só dependia do meu esforço em fazer o projeto final) simplesmente não tinham como competir pelo meu tempo. Isso fez minha produtividade se deteriorar completamente e me botou em maus lençóis aqui. Claro, ainda tinha o emprego, o salário e a estabilidade, mas não era mais uma peça importante para o Tribunal já há algum tempo.

Então, não é estranho que eu esteja partindo para uma empreitada arriscada. Não tem por que perder mais tempo, dinheiro e saúde procurando um coquetel químico que emule uma solução que está na minha cara: eu preciso da instabilidade, da pressão, para voltar a ser feliz. Claro que existe o outro lado da moeda - apesar de me fazer focar, a instabilidade também me exaure. Mas mesmo trocar um problema por outro é um bom negócio, porque para isso existem outras soluções que podem funcionar melhor do que o que eu tenho hoje em dia. E, se bem me conheço, uma vez que a minha produtividade profissional volte a ser estimulada, o céu é o limite.

Então relaxem, queridos amigos. Não estou louco, nem inconsequente. Estou, na verdade, dando um passo muito bem calculado e cientificamente embasado na direção de uma melhora de saúde, de humor e de vida. Só parece meio doido para vocês porque vocês ainda são apegados a noções abstratas de segurança e conforto, mas eu já descobri que segurança e conforto são contos de fadas, e que a vida é essa coisa fluida, dinâmica, e instável por natureza (tanto que a única coisa definitva que existe é justamente a morte). Não me entendam mal, não critico ninguém por valorizar a calmaria. Mas a vida vem em ondas, já diria o profeta, e eu prefiro surfar a me agarrar a uma bóia.

E vamos lá rumo à vida nova!