11.2.14

CARTA ÀQUELES QUE CONCORDAM E SE SENTEM REPRESENTADOS PELOS IDEAIS DE RACHEL SHEHERAZADE

Olá. Não nos conhecemos, mas gostaria de me apresentar. Meu nome é Rafael, tenho 33 anos, casado, pai de 2 filhos, funcionário público federal. Pago meus impostos em dia. Não sou nem nunca fui filiado a nenhum partido político, mas me considero um esquerdista (pelo menos na concepção de 20 anos atrás, não sei o que se entende por esquerdista hoje.) Nas 3 eleições presidenciais que vivi em condições de votar, votei em Lula e Dilma. Não sei em quem vou votar esse ano porque o governo atual, a despeito do que fez de positivo, se distanciou demais da minha visão política para continuar recebendo meu subsídio simbólico. Digo "simbólico" porque eu, na minha combinação incomum de formação filosófica/condição socioeconômica, jamais farei parte de um grupo homogêneo grande o bastante para ter peso em eleições. Sou a eterna minoria, e já me acostumei a isso. Mas ainda assim, cumpro meus deveres cívicos.

Como vocês já devem ter deduzido, eu sou radicalmente contra o discurso do "bandido bom é bandido morto," sou defensor ferrenho dos Direitos Humanos, não acredito em violência como resposta para nada e muito menos na existência da instituição "cidadão de bem."

Ao contrário do que vocês devem ter imaginado, não sou Marxista, Stalinista, comunista, socialista, nem pratico qualquer outro "ismo" político. Não sou contra a propriedade privada nem a favor da anarquia. Não sou Black Bloc, não sou do Anonymous, não vandalizo símbolos do capitalismo e DEFINITIVAMENTE não atiro rojões contra policiais ou jornalistas. Na verdade, abomino essas coisas tanto quanto vocês.

Por que estou escrevendo para vocês, membros da sociedade que a esquerda ativista tão facilmente joga na vala comum dos rótulos de "coxinha" e "reaça," se discordo de tudo o que vocês pensam?

Porque quero ser amigo de vocês.

É meu entendimento que estamos num momento delicadíssimo no país, e ninguém está fazendo nada para conciliar as partes. Tudo o que eu vejo na mídia, nas redes sociais, no papo de elevador, é gente jogando pra própria platéia. O debate político no país ficou em coma por muitos anos, mas agora que voltou parece que todo mundo só está interessado em gritar, rosnar, enfiar seus ideais goela abaixo dos discordantes, ou pior: nem faz questão de explicar seus pontos de vista, apenas ironiza e hostiliza as opiniões contrárias e trata quem as têm como um inimigo. A ficha caiu assistindo a um vídeo gravado no domingo, onde jornalistas tentavam entrevistar três manifestantes que chegavam à delegacia para se inteirar do caso do cinegrafista Santiago Andrade. No vídeo fica claro que os dois grupos já começam a interagir na ofensiva, trocam farpas desnecessárias, e no ponto culminante do vídeo, um dos ativistas diz a um cinegrafista que "espera que ele seja o próximo" (a levar um rojão na cara), ao que o cinegrafista simplesmente golpeia a cabeça do menino com a câmera. É um show de horrores, de bile, de intolerância, e é uma situação absurda que não favorece ninguém. Os dois estavam errados, e os dois estavam calçados em justificativas emocionais genuínas para suas reações. Mas justificativas emocionais não valem de nada em sociedade. Somos seres racionais, e estamos deixando de nos comportar de acordo por causa de uma crescente histeria coletiva.

Então estou tomando a iniciativa de sair da comodidade de apenas repercutir idéias que corroboram com as minhas para meus amigos (que felizmente pensam como eu em questões fundamentais, ou dificilmente seriam meus amigos) e de expôr ao ridículo os pensamentos contrários - sabendo que assim, quem os tem também se sente ridicularizado e atingido. Estou estendendo a mão e oferecendo uma trégua, e tudo o que peço é que leiam desarmados - e que, sobretudo, não se sintam paternalizados. E nem se sintam corrigidos, porque eu não acho que vocês estejam errados. Dentro do universo de argumentos que compõem a filosofia do olho-por-olho, dente-por-dente, vocês estão certos.

Mas estar certo não significa estar correto. Parece estranho, mas deveria ser óbvio. Ninguém considera a própria opinião errada, e mesmo assim existem opiniões divergentes no planeta. Então, o que diferencia o certo do correto? Pra começar, o correto é um estado utópico e inalcançável, mas nossas certezas podem estar mais ou menos próximas do correto. E, na maioria das vezes, isso depende diretamente da quantidade de informações sobre um fato que cada um possui. Muitas pessoas que têm opiniões diferentes sobre o mesmo assunto, na verdade, pensam da mesma forma e têm os mesmos valores. O que muda é a quantidade de informação em que a opinião se baseia. Então, você pode estar certíssimo em seu ideal baseado em 3 ou 4 fatos que servem para alimentar sua opinião, porém outros 5 fatos que você desconhece mudariam a equação para um resultado radicalmente diferente.

Então eu venho aqui tentar explicar, bem didaticamente, os motivos que me levam a acreditar que vocês têm uma visão muito incorreta dos problemas que povoam a nossa realidade cotidiana e suas possíveis soluções.

Vou começar dizendo que é natural e normal pensar assim. Na verdade, é instintivo. A revolta, a agressividade, a reatividade são elementos fundamentais do ser humano e de quase todos os seres vivos. Sempre que nos deparamos com a violência, a agressividade alheia, temos o mesmo instinto de nossos ancestrais: defender nosso território e nossas vidas. Na natureza, a única forma de fazer isso é o conflito, e portanto somos moldados e chaveados para querer o conflito quando nos sentimos ameaçados. Com essa estrutura psicológica pura, e munido apenas das informações que se forçam às nossas percepções (é impossível ignorar a violência quando todo dia ela está estampada nas nossas caras, isso quando não aparece pessoalmente para nos assombrar), não existe outra resposta que não a da defesa, na necessidade de extirpar a força agressora. Nesse estado de coisas, isso é mais do que o certo, é o natural.

Mas nós não somos apenas animais. Nós somos racionais. Nós temos linguagem, organização, raciocínio. Todas essas dádivas nos separaram dos demais animais e nos deram a chance de escolhermos como nos organizarmos socialmente de forma otimizada para a espécie (ao contrário de, por exemplo, abelhas e formigas, cuja organização social, apesar de sofisticada, é aquela que está impressa no DNA e só). Em especial, a capacidade de transmitir nossas experiências através das gerações nos faz com que sejamos um grande organismo coletivo cujo tamanho, complexidade e capacidade vem crescendo continuamente por milhares de anos, em ritmo acelerado. Através desse tempo, enfrentamos muitas dificuldades, e a principal é justamente a eterna presença dos instintos primitivos que volta e meia reclamam alguns anos de progresso da nossa espécie.

Por estarem conosco desde os mais distantes antepassados, esses instintos não são novidade para ninguém. Os mais antigos pensadores registrados na História já as conheciam, já as viam como obstáculos ao refinamento da espécie, e já propunham mecanismos que minimizassem o impacto desses instintos na organização social, para que todos prosperássemos juntos.

Mas se fosse fácil negar o instinto, o problema já estaria resolvido desde Aristóteles. Não é, e não está. Por mais rápida que seja a evolução tecnológica da humanidade, a evolução biológica é um processo infinitamente mais lento. Por isso a história é recheada de exemplos de comportamentos primitivos - instintos, hormônios, mentalidade de massa, etc. - causando grandes danos e dolorosas involuções na organização social. É como se alguém tentasse montar um castelo de cartas durante uma crise incurável de soluços. É um ciclo eterno de construção, demolição, reconstrução com bases mais sólidas, demolição, reconstrução com bases ainda mais sólidas... e, claro, de tentar se prevenir contra o próximo soluço evolutivo. As causas são as mesmas desde sempre, então por que somos incapazes de evitá-las?

Porque nossa memória é curta, e porque o trauma de um desabamento vai diminuindo conforme ele vai ficando para trás. O trauma é um dispositivo importante no ser humano, porque ele age diretamente no instinto, inibindo a nossa reincidência em erros que têm consequências catastróficas. Mas quando ele passa, mesmo que o registro do ocorrido persista, ele não tem mais efeito fisiológico, apenas racional. E aí, historicamente, é uma questão de tempo até o homem primitivo sabotar o homem racional.

A única forma de combater esse ciclo é tentar racionalizar. E socialmente falando, isso é feito repassando a história, educando a nossa prole a bloquear esses instintos autodestrutivos desde pequenos, para que eles não se somem ao movimento retrógrado que carregamos como uma âncora.

Por que eu digo isso tudo? Porque estamos vivendo um momento que se parece perigosamente com o início de uma queda-livre social que vai destruir muita coisa que construímos. Porque opiniões baseadas unicamente em uma resposta visceral ao sentimento de impotência, opressão e exclusão que sentimos estão ganhando força, ecoando cada vez mais alto. E todas - TODAS - as vezes que isso aconteceu na história, e foram muitas, todo mundo perdeu. A idade média, as grandes guerras, a ditadura militar no Brasil, todos esses foram momentos da história em que viramos mais animais e menos humanos, e a sociedade organizada involuiu como consequência. É sempre por causa desse sentimento, seja ele artificialmente alimentado ou não (e acreditem, quase sempre é), que nós perdemos liberdades, direitos, vidas. Não porque pessoas erradas tiveram vontades erradas, mas porque pessoas que não viveram o trauma na pele e nem têm memória do passado agiram sobre seus instintos primitivos, com paixão e certeza.

A mesma paixão e certeza com que vocês agora aplaudem o que a Rachel Sheherazade diz. Porque é libertador, é catártico, libertar a fera. É um alívio descomunal parar de se esforçar para afogar a agressividade, a animosidade, aquilo tudo que mora dentro das nossas veias, em nome de uma sociedade que não dá em troca aquilo que nós merecemos pelo esforço.

Inclusive, é exatamente isso que acontece na mente e no fígado dos assaltantes, homicidas, criminosos, desses bandidos todos. Só que o ponto de ebulição deles foi antes, e com algum outro catalisador que era menos loirinho, menos articulado, e menos visível nacionalmente do que a jornalista Rachel Sheherazade. E a dívida da sociedade para com eles é bem maior.

Se algum de vocês chegou até aqui, talvez tenham torcido o nariz agora e pensado "Ah, pronto, lá vai ele defender bandido." Não vou defender bandido - embora esse termo seja muito infeliz, já que grandes personalidades históricas e até religiosas que nós temos como parágonos da justiça e virtude tenham sido bandidos, às vezes condenados e presos a postes (ou cruzes) para esperar a morte. Estou apenas dizendo que somos todos iguais. Todos nós, do meu lado, do seu, do lado dos "vagabundos," todos temos a mesma responsabilidade de conter o instinto primitivo para podermos usufruir da vida em sociedade - que, pra piorar, nem é facultativa. E sem o trauma para nos dar uma injeção de adrenalina e nos avisar que estamos todos caminhando para um retrocesso abismal, é fácil sentir que não estamos fazendo um bom negócio.

Se vocês que estão inteiramente inseridos e beneficiados pela sociedade (e antes que alguém ouse pensar que não precisa ou não se encaixa na sociedade vigente, responda se você construiu sua própria casa, caçou ou plantou sua própria comida, talhou seus próprios utensílios e nunca, JAMAIS, utilizou moeda corrente de qualquer sistema financeiro existente no mundo. Se a resposta não foi sim para todas as perguntas, você está inseridíssimo na sociedade, inclusive na parte privilegiada) se sentem assim, imaginem como seria viver à margem da mesma. A mesma responsabilidade de ser racional e correto, em prol de uma sociedade que largamente te ignora, e que constantemente esfrega na sua cara que tem gente se dando muito melhor do que você sem fazer um milésimo do esforço. Quantos de vocês hesitariam em mandar os outros para o inferno e defender o seu?

A julgar pela atitude que transpira nas declarações de vocês, a resposta é zero.

Então compreendam que ser contra esse discurso não é defender "bandido" em prol de "cidadão de bem," é meramente ter uma visão maior das coisas e entender que vocês e os bandidos estão no mesmo barco, do mesmo lado, e tendo a mesma reação diante das adversidades. Estão sendo igualmente humanos, demasiadamente humanos.

Só que nós aqui desse lado (a maioria, porque tem muita gente que defende ideais progressistas mas reage da mesmíssima forma que os "reaças," inclusive foi o que mais rolou nos protestos de rua, para meu profundo desapontamento. Totalitarismo é totalitarismo independente da bandeira que se empunha - ou da falta de bandeira que se impõe a outrem) também temos um olho na história, reconhecemos os sinais sociais de um colapso social despontando no horizonte, e tentamos evitá-lo a todo custo. Porque se atualmente está ruim, a alternativa é bem pior. Sempre é.

Vocês reclamam que estamos sendo patrulhadores, censores, que estamos cerceando seus direitos de autodefesa e de proteção do seu status e estilo de vida, mas a verdade é que nós não lutamos contra nenhum direito, apenas a favor do direito de todos. O único "direito" que nós negamos a vocês é o "direito" de legislar sobre a vida alheia, e uso aspas aqui porque isso não é direito de ninguém em nenhuma escola filosófica do planeta. O direito de cada um acaba quando começa o do outro. Parece batido, porque é. É uma verdade universal e fundamental, é o pilar da sociedade da nossa espécie, e sem ela, viramos animais.

A sociedade atual é violenta porque é desigual. Porque não há igualdade de direitos, não há igualdade de oportunidades, e não há igualdade de tratamento. O ônus do direito à propriedade privada é estar sempre à mercê dos efeitos do desequilíbrio. Quanto mais a balança do privilégio pesa para um grupo de membros da sociedade, menos o outro grupo se interessa em se manter incluído. Defender o seu privilégio é defender um estado de perpétua desigualdade, que por sua vez gera uma violência sem fim. Não existe justificativa moral, ética ou estrutural para a desigualdade. A idéia de que existe um "bandido" malvadão e uma "gente de bem" que faz tudo de acordo com as regras e vive confortavelmente porque foi um ser humano exemplar é uma falácia grosseira, mas é cômoda porque assim a consciência de quem está mais preocupado com seu individual do que com o coletivo não pesa quando algum desfavorecido pede trocado no sinal, ou leva seu relógio de marca.

O problema é que, se deixada sem supervisão, ela vai nos levar, a todos, de volta à pré-história.

É isso. Essa é a essência do que nos coloca de lados opostos nessa briga-de-torcida que virou a política no Brasil. Não somos inimigos nem queremos tirar o que é de vocês por direito. Só pedimos que entendam que, no fim das contas, a sua propriedade é que fomenta a violência que tenta tirá-la de você. E que responder isso com mais violência pode parecer certo nas suas glândulas, mas só vai causar mais e mais dano, até que ninguém tenha mais nada.

Por favor, considerem com carinho.

Abs,
Rafael