23.3.12

Adeus inocência


A despeito dos impulsos que eu volta e meia tenho, é raro usar esse blog pra comentar alguma notícia (ok, é raro usar esse blog, ponto). Mas ontem uma série de acontecimentos gerou uma situação bastante curiosa no Twitter, dessas que eu tenho vontade de comentar mas jamais conseguiria fazê-lo em parcelas de 140 caracteres - ou seja, um assunto sobre o qual tenho uma opinião elaborada. Em 140 caracteres só cabem palavras de ordem e julgamentos absolutos.

Um tempo atrás, um burburinho no Twitter chamou minha atenção a uma das páginas mais ofensivas que eu já tive o desprazer de conhecer, e olha que eu tô nessa tranqueira de internet desde 1996: um blog entitulado "O Perdedor Mais Foda do Mundo," assinado por um (obviamente fictício) Silvio Koerich, onde o autor postava textos de conteúdo chocante, destilando ódio e ofensas aos mais variados grupos sociais e étnicos - negros, nordestinos, judeus, mulheres, quase um minucioso e abrangente catálogo de preconceitos. E não eram apenas ofensas, o negócio descambava pra ameaças de morte, incitação escancarada a violência, pedofilia, estupro e assassinato. Fotos explícitas de crimes bárbaros, posts ameaçadores endereçados a personalidades reais, enfim. O pacote completo.

A princípio, encarei como obra de algum desses incontáveis moleques perturbados que usam o anonimato da internet pra dar vazão a todas as suas fantasias de poder e que satisfazem uma necessidade imperativa de atenção abraçando causas socialmente inaceitáveis ou criminosas apenas pra causar celeuma. Já vi muito disso, nesses 16 anos de interwebz, e a verdade é que, com o tempo, o modus operandi desses "trolls" foi gradualmente se refinando. O que antigamente era só alguém escondido atrás de um apelido xingando muito no IRC ou em listas de discussão pra receber imediatamente a gratificação da revolta alheia, com o tempo foi se fantasiando de causa "legítima." Os iconoclastas já não se contentavam em revoltar pequenos grupos ou pessoas específicas em troca de um flame war pra aquecer as noites solitárias. Eles foram aprimorando o discurso. A era pós-11 de Setembro os ensinou que qualquer coisa pode ser legitimada se tratada como uma opinião política (que por sua vez justifica qualquer merda, contanto que se acredite fanaticamente nela). Idiotices milenares como criar páginas e foruns pra zombar e ofender vítimas de desastres que comovem a opinião pública passaram a ser uma forma de "protesto" contra o "establishment." Boçais se reuniam em grupos que tinham "bandeiras" - meras desculpas para a masturbação egóica, agora coletiva, que eles promoviam sob forma de "ataques" ou publicação de opiniões absurdas. Toda essa idiotice, pra mim, sempre foi apenas uma pantomima pra justificar - para outros e para si mesmos - o que essas besteiras sempre foram: carência de atenção.

Talvez por isso mesmo, meu cérebro estivesse condicionado a processar postagens abjetas como a do tal blog do "Sílvio Koerich" (que, agora se sabe, é o nome de um outro blogueiro que os donos do blog começaram a usar sem autorização como represália ao cara) como meras hipérboles da fantasia de um molecote espinhento que não consegue se impôr nem se enquadrar na sociedade e usa a internet pra se passar por alguém poderoso, seguro e dominante. Como de praxe. Denunciei, é óbvio, porque mesmo absolutamente fictícios, o conteúdo dos posts já era suficientemente criminoso para tal. Mas nunca na vida imaginaria que os donos daquela pocilga já fossem adultos formados, com emprego fixo, e um deles com meio milhão de reais na conta vindos não se sabe de onde. Tive um choque de realidade ontem ao ler a notícia. Não são moleques com delírios de grandeza. São adultos, emancipados, economicamente ativos, e psicologicamente perturbados. Isso é muito grave, porque molecotes espinhentos normalmente não têm outra forma de dar vazão a suas psicoses que não na interação textual pela internet. Mas adultos com dinheiro, esses podem fazer estrago. E, pelo que a Polícia Federal indicou, eles tinham planos reais e materiais de fazer estrago. A porra ficou séria.

Isso me fez repensar muitos dos meus comportamentos padrão, em especial o de achar que a internet é feita de adolescentes e pré-adolescentes. Curioso que essa noção não tem nenhuma razão de ser além do fato de que EU era adolescente quando entrei aqui, de que na minha experiência pessoal todos os idiotas que causavam revolta na internet também ERAM adolescentes. Foi nessa época que meu "streetwise" online se formou e foi assim que eu encarei toda e qualquer briga online desde então, como rusguinha de adolescentes que são super machões online mas, na hora do vamos-ver, olham pro outro lado com cara de cu. Claro que desde aquela época existem sites de terroristas, de nazistas, grupos organizados de praticantes de crime de ódio, etc. Mas, primeiro, aqui no Brasil isso era meio que lenda até agora. Rola muito submundo de pedofilia na internet brasileira, mas submundo de racismo pra mim era coisa de americano e europeu. Não mais. Adolescentes trollzinhos não angariam 500 mil reais nem mapas esquemáticos de casa de festa de faculdade onde se pretende encenar um massacre armado. Isso não é pilha pra conseguir atenção. Isso é doença de verdade, e os doentes estão aqui entre nós. Pra mim, ao menos, acabou a farra dos flame wars e das trollagens sem medo de ser feliz. Acabou o cinismo de achar que tudo é trollbait. Vou tomar bem mais cuidado com isso a partir de agora.

E eu sei que não sou o único a rever meus conceitos depois dessa história. Ontem, depois da prisão de dois dos envolvidos no tal site, uma treta sem precedentes eclodiu na minha timeline do Twitter, em que um grupinho acusava outro de ter dado moral ao Silvio Koerich ao retwittar um texto (bem tosco, diga-se) do cara sacaneando o feminismo. A despeito de achar que nenhum dos dois grupos envolvidos lidou com a situação de forma adulta (e não faço críticas porque, como eu, todos deviam estar ainda atordoados com a notícia), acho que o episódio ilustrou muito bem a necessidade de um amadurecimento de conceitos como o que eu me comprometi a adotar ali em cima. Boa parte dessa galera, assim como eu, foi criada nas tretas online de molecagem, e provavelmente também não leva(va) a ferro e fogo certos tipos de provocações. Todos nós já estivemos lá - jogar uma bomba da discórdia no meio da discussão para inflamar os ânimos. É uma técnica clássica para desestabilizar o interlocutor. Nesse espírito, muitos dos sujeitos que não se bicam com o movimento ultrafeminista (que, como todos os movimentos, tem uma causa - justa - no seu cerne, mas que adapta a contundência de sua argumentação de acordo com os interlocutores. Só que quando se fala grosso com quem precisa de grosseria num meio generalista como a internet, pessoas razoáveis também lêem e se sentem trespassadas pelo tom e consequentemente antipatizam com as causas justas por aversão aos argumentos) e costumam usar um machismo irônico nas discussões unicamente para irritar as "adversárias," foram pegos ontem de calças curtas com suas arrobas associadas ao Silvio Koerich (o original, não o fake criminoso) por terem retuitado um desses textos trollbait do cara. Na boa e velha internet-moleque de anteontem, eu teria dado risada do texto. Hoje, o buraco é mais embaixo. E claro que muita gente perdeu a mão ao apontar o dedo pra essa situação, e muita gente perdeu a cabeça ao se defender. Eu vi até gente partindo pra ameaça de processo (e aqui reservo-me ao direito, mesmo tendo prometido ali em cima levar a internet mais a sério, de considerar isso a técnica mais velha, mentirosa e boçal de intimidação do planeta. Pelo menos isso não vão me tirar.) e pouca gente dos dois lados da questão - basicamente o Pablo Villaça e o Israel "Izzy" Nobre - racionalizando a parada e transformando a guerra de cocô em uma reflexão válida. Espero que, conforme os ânimos vão se acalmando, outras pessoas façam o mesmo. Eu estou fazendo.

A internet ficou um pouco menos divertida com essa história, mas também ficou um pouco mais segura - felizmente, ANTES de ter consequências desastrosas.