7.2.11

Tem um segredo na vida que eu pretendo revelar para meus filhos assim que eles tiverem idade para compreender, um segredo que eu, mesmo, só fui descobrir depois de velho, e que uniu algumas pontas soltas percebidas na juventude de forma elegante e satisfatória. Um segredo que muita gente jamais descobre, e que pode dar algum conforto aos nenéns conforme eles vão construindo sua estrutura social, uma etapa sempre complicada da vida.

E o segredo é: Não existe bom nem ruim. Todas as coisas te dão exatamente o quanto você está disposto a investir nelas.

Isso pode não parecer segredo nenhum e ser até bem óbvio para a maioria das pessoas, uma vez que é dito. Mas de alguma forma, não é assim que a maioria das pessoas reage ao analisar o comprometimento dos iguais com as coisas que lhes apetecem. O famoso "gosto pessoal," tão presente nos ditados que compõem o senso comum.

Claro, a inexistência do bom e do ruim não significa que as coisas (e vou estreitar aqui o discurso sem perda de generalidade transformando "coisas" em "produtos de arte e entretenimento" - música, filmes, livros, movimentos culturais, etc.) não possam ser avaliadas em termos objetivos e universais. Podemos avaliá-los, por exemplo, na escala de tosco/elaborado ou na de formulaico/criativo. Ambas as medidas são costumeiramente confundidas com ruim/bom, mas isso é uma bobagem. Mais sobre o assunto adiante.

Antes de mais nada, um pouco de background. Não é segredo para ninguém que no meu "estágio probatório" de convívio social eu escolhi o caminho do que classicamente se chama de Nerd. O que significa que eu interagia menos do que o "normal" com as pessoas ao meu redor, e - talvez por consequência - absorvia menos dos gostos e interesses "normais" (o termo normal aqui é usado estritamente no sentido estatístico). Por ter também aprendido a ler mais cedo do que a média (e, em contrapartida, ter um desenvolvimento tardio da coordenação motora) o espaço que os esportes e as atividades físicas ocupam no desenvolvimento padrão de uma criança foi tomado pelas atividades mentais - leitura, principalmente. Por consequência, eu estava investido em obras mais complexas mais cedo do que o padrão.

Como é natural dessa fase do desenvolvimento social, durante toda a infância e adolescência, a combinação de fatores supracitados me levou a entrar no "time" das crianças em situação vagamente similar e ser um Nerd por todo esse estágio em que precisamos de rótulos facilmente identificáveis para sobreviver ao furacão da interação social. E como é igualmente natural, as crianças que eram categorizadas da mesma forma conviviam e trocavam experiências e gostos, e assim eu fui devidamente imbuído da subcultura nerd clássica - todos aqueles interesses que são tão bem-aceitos no meio que viram bandeiras do segmento social, defendidas com unhas e dentes como se fossem elas mesmas a própria identidade do indivíduo. Quadrinhos de super-heróis, RPG, Ficção Científica, Épicos de fantasia, camiseta de banda de rock, o pacote completo.

Nessa fase da vida, quando estamos fixando o conceito abstrato de Ruim/Bom, os interesses em que a nossa subcultura de "escolha" tem maior investimento viram nosso parágono de qualidade, e os interesses mais alienados pelos nossos iguais são rechaçados como ruins. Talvez não o fossem, se jovens em formação social não confundissem seus gostos pessoais com estandartes (e, o verdadeiro erro, os gostos pessoais de outras subculturas como bandeiras inimigas).

Esse processo me parece universal, e mesmo não tendo tido outras infâncias enquadrado em outras subculturas, acredito que seja a mesma coisa em qualquer caminho trilhado. Só que essa fase acaba e eventualmente o mundo, com toda a sua pluralidade cultural, se abre para que nós possamos enfim sermos indivíduos interagindo além das castas escolares. Claro, círculos sociais ainde existem, afinal mesmo uma mente adulta precisa de algum tipo de classificação para saber lidar com as milhares de pessoas que cruzam seu caminho ao longo da vida. Mas não existe mais a pressão implacável dos iguais para que reforcemos o estereótipo, pois as bandeiras da juventude perdem importância diante dos desafios individuais que a vida adulta apresenta (carreira, vida amorosa, família).

Infelizmente, nem todo mundo consegue superar a confusão identidade/subcultura e nunca realmente se permite olhar por cima do muro cultural auto-imposto e nas "bandeiras inimigas." O que é deprimente, de fato, porque o enquadramento em uma subcultura é resultado dos interesses individuais em dado ponto da vida - interesses que podem vir dos pais, dos amigos, da televisão, de qualquer lugar, mas que são essencialmente nossos, porque os selecionamos espontaneamente e investimos neles. Uma vez que caímos numa sociedade que largamente caga e anda para nossos próprios investimentos, ater-se a uma subcultura juvenil é limitar voluntariamente seu repertório.

No meu caso, eu tive sorte. Das várias turmas que tive desde o fim da adolescência, mesmo compostas basicamente por nerds, todas tinham pessoas com gostos pessoais que iam além do "socialmente aceito" para um nerd colegial. Sempre tinha alguém que gostava de alguma coisa que durante a juventude tinha sido parte de outra casta, e minha curiosidade sempre falou mais alto que o preconceito herdado dos rótulos. Aprendi a gostar de esportes, acompanhar, torcer, discutir. Comecei a ver filmes e ler livros de gêneros que antes não me interessavam. Da minha própria infância e das influências familiares resgatei também outros interesses grandes, como a música clássica e a MPB. Expandi bastante meus horizontes musicais, avaliando sem preconceitos a música eletrônica, a música pop, a música regional, e tantos outros estilos largamente hostilizados pela subcultura nerd. Aprendi a prestar atenção na televisão antes de jogar toda a programação de todos os canais no mesmo balaio pretensiosamente rotulado de "lixo cultural." Aliás, aprendi que não existe lixo cultural.

Eu perdi até mesmo o receio de dançar, e por anos me joguei em baladas rock e pop diversas vezes por semana, dançando em palquinhos sem medo de ser feliz! Isso sim é quebra de estereótipo =P

E a verdadeira lição que eu tirei disso tudo é que existe "bom" em qualquer lugar. Basta que se invista atenção e tempo suficientes em uma obra para que essa obra o recompense com todas as sensações que se associa a uma experiência boa. Como todos nós investimos naquilo que é "obrigatório" para aceitação na tribo em que nos jogam lá nos meados da nossa infância.

E, como eu disse antes, mesmo obras universalmente toscas podem ser boas. Conheço muita gente que tira verdadeira satisfação de obras toscas. Quanto mais tosca, melhor. Isso não é nenhuma falha de caráter nem tampouco pobreza de espírito. Alguém que se dispõe a ser entretido pela tosqueira pode achar uma fonte infinita de recompensas, afinal o tosco é cru, amorfo, acidentado, e portanto rico em detalhes. Basta que alguém realmente queira ser entretido pelos detalhes dissonantes, há mais deles em obras toscas do que em qualquer obra ultra-elaborada.

Também conheço muita, muita gente mesmo, que realmente aprecia o formulaico. Esse caso é mais complexo, porque o lance da fórmula é que ela pega um investimento e transfere para diversas outras obras. Há quem consiga extrair a diversão de cada uma delas, e há quem já tenha recolhido todo o investimento e não encontre mais qualquer diversão em mais do mesmo. Isso significa que o criativo e novo é melhor do que o formulaico e, portanto, "bom?" Não. Tudo o que é realmente novo é isento de qualquer investimento. A mente humana não consegue sequer compreender algo realmente novo da primeira vez que absorve. É preciso investir, tempo, atenção, vontade, para que algo inédito comece a ser satisfatório. É por isso que tem músicas que soam estranhas mas depois de algumas repetições "entram" na nossa cabeça e passam a ser do nosso gosto. Gostamos do que está em algum ponto entre o totalmente inédito e o totalmente saturado. Não tem nada a ver com bom ou ruim.

Por isso é que desde cedo, pretendo ensinar aos meninos que é normal procurar um molde, uma identidade, especialmente nos primeiros anos da vida. E que é natural viver esse molde como a própria identidade por uns anos. Mas esse estágio passa, e dali por diante, sempre ignore qualquer tentativa de qualquer pessoa tentar ensiná-los o que é bom e o que é ruim, ou pior, o que eles devem ou não devem gostar. Esse tipo de pregação moral não tem fundamento, é o ranço de uma fase com início e fim em que a linha entre aceitação e aceitável é difusa, e que restringir a satisfação que se pode receber da arte e do entretenimento com base nessas regras furadas é desperdiçar amplamente os prazeres sensoriais que a vida nos oferece.