15.10.10

Aos pais de merda

Sempre soube que a paternidade mudava radicalmente a nossa vida, mas confesso que minha rica e intensa experiência tem me moldado para caminhos que eu não esperava. Nunca fui, por exemplo, dado a rótulos como "de merda." Raramente na vida considerei alguém digno de ser ser denegrido a esse ponto, porque sempre fui compelido por uma vocação de alma a analisar todos os pontos de vista de uma questão e entender as causas ao invés de julgar os efeitos. Claro, isso nunca me impediu de aplicar a pecha a alguns desafetos com a intenção específica de desabafar, mas realmente considerar alguém um merda, até hoje tinha sido difícil. Todo tipo de falha de caráter ou de amoralidade que eu presenciei pessoalmente tinha alguma base ou justificativa torta em fraquezas corriqueiras do ser humano. Todo mundo tinha alguma lógica para se considerar protagonista da própria vida e eu em geral entendia e respeitava essas coisas, afinal, cada um sabe a dor e a delícia (ou o inferno) de ser o que é.

Mas agora que sou pai, e avaliando a meu redor a capacidade de outros pais de desestruturar e causar dor a seus filhos - que infelizmente tenho testemunhado bem mais do que eu gostaria - eu sei que não existe justificativa, por mais remota que seja, para massacrar quem você mesmo botou no mundo. Ninguém pede para nascer, mas também ninguém é obrigado a procriar. O prazer envolvido no ato, a vocação genética, nada disso pode ser usado como desculpa no século XXI com inúmeras alternativas acessíveis para foder sem conceber. A partir do momento em que se inflige a vida (por assim dizer) a alguém, essa vida está na sua conta pelo resto dos seus dias. Fazer miserável essa vida que também não lhe pediu para nascer, é ser sim um merda no sentido amplo e profundo do termo. Um merda com pedigree.

A maioria dos pais de merda justificam sua própria incompetência com a incompetência de seus próprios pais, o que é a coisa mais merda a se dizer na vida. Que tipo de escroto repassa uma violência sofrida a um terceiro inocente? Uma variação dessa corja são os filhos de pais de merda que decidem que criarão seus filhos da forma exatamente oposta à que foram criados, uma armadilha muito comum entre os ineptos de bosta que criam pequenos monstrinhos. Dica para quem planeja fazer isso com seus próprios filhos: O oposto de um erro não é necessariamente um acerto. Por "não necessariamente" leia-se "quase nunca."

Outra grande babaquice que pais de merda dizem para justificar o injustificável é jogar a culpa da relação degradante nos filhos, tratá-los como se fossem casos perdidos, decepções, potenciais que fracassaram. Esses putos esquecem que se seus filhos são deficientes em algum aspecto, é basicamente porque eles foram incapazes de formá-los a contento. Muitos idiotas acham que um bebê é uma esponja que eles podem preencher com o que quiserem, um autômato que nascerá compreendendo comandos verbais e que viverá em função dos sonhos e ambições (muitas vezes transferidos das próprias frustrações) dos pais. É impressionante que isso seja surpresa para alguém, mas bebês nascem com personalidade própria. O aprendizado do ser humano acontece em fases bem distintas e apenas a última delas, se tanto, envolve a aceitação de lições verbalizadas. E mesmo essa aceitação é indireta, complexa, sujeita aos caprichos da alma da criança. Pais que falham em reconhecer isso e posteriormente oprimem seus filhos com cobranças, antagonismos e decepção, são duplamente merdas por terceirizar a própria inaptidão. Covardes de merda.

Inclusive, vai aí a dica mais valiosa que eu posso dar para alguém nesse momento da minha vida, algo que realmente ficou muito evidente depois que virei pai. Pessoas que ainda estão naquele estágio de terminar relacionamentos por incompatibilidade, por favor evitem ter filhos. Claro que a paternidade (ou maternidade) pode ter um efeito mágico e causar um amadurecimento instantâneo que a viabilize, mas se isso não acontecer, as chances de você se tornar um pai ou mãe de bosta são grandes. Seus filhos terão um relacionamento com você tão intenso quanto qualquer casamento, possivelmente mais. Eles vão ter horários diferentes dos seus. Vão demandar mais do que oferecem em troca por grande parte da vida. Todos, sem exceção, são egocêntricos (que ao pai de merda parece egoísmo) por algum tempo, todos estão aprendendo a ouvir, falar, ler, contar, tudo ao mesmo tempo e tudo do zero. Todos nascem num ciclo de subsistência básico e só com o tempo vão lapidando a moral e o caráter. Todos vão torrar seu dinheiro, dominar sua casa, contestar suas decisões e, depois de anos dessa relação sugadora e acorrentadora, se a natureza seguir seu curso padrão, eles trocarão seu afeto pelo de outra pessoa, normalmente bem mais jovem.

Então, se você não está preparado para amar dessa forma, se não consegue se imaginar passando anos ao lado de alguém que ultrapassa todos os seus limites e que não abre brechas para repensar relacionamento ou espairar, então evite ter filhos. Mesmo. Eu diria até "não tenha," uma postura radical dessas inviabilizaria a existência de duas das coisas mais preciosas da minha vida, o que significa que algumas pessoas podem fazer um enorme bem apesar de seus pais de merda. Mas não posso endossar de forma alguma o tipo de sofrimento a que o filho de um merda é submetido. Sei que sofrimento é importante e engrandece a alma, mas fontes de sofrimento nesse mundo não faltam, a família não precisa fornecer ESSE aprendizado.

Eu, felizmente, estou pronto. E para quem sabe do que se trata e aceita os termos do contrato, ser pai é a melhor coisa do mundo.